Meu pai sabe cavar cacimbas, sempre
trabalhou com isso. Lembro que quando era criança eu o observava, da beirada,
curioso e contemplativo. Tudo começa em um círculo desenhado no chão com o
dedo, normalmente feito mais ao fundo do quintal, longe de casa. Depois se
torna um buraco pequeno e então ele vai dando as primeiras formas, retirando o
barro, acertando as margens com a chibanca e gradativamente perfurando o chão
até que ele se torne uma cratera com profundidade, escuridão e calor.
Depois de observar um certo tempo notava
que, para ver meu pai, precisava ir bem mais próximo da margem, dada a fundura
que o buraco ia ganhando em cada pancada. Agora ele já estava tão dentro que
para retirar o barro, a pá já não servia, porque as paredes estavam
demasiadamente altas para a força de seus braços. Então a gente punha uma corda
num cesto (bem forte, feito de cipó) e o descia, vagarosamente. Quando meu pai
o enchia, a gente puxava. Lembro que era muito interessante olhar a cor do
barro que ia gradualmente se tornando mais escura e mais umedecida. Depois, o
próprio barro mais pedregoso, mais duro e firme. Era o sinal de que já estava
perto de encontrarmos o famoso "olho d'água". Às vezes eu irritava
meu pai perguntando insistentemente, inquieto e ansioso, sobre o final desse
processo todo. Eu queria ver a água! Meu pai, com a calma que a experiência lhe
tinha dado, respondia, às vezes rindo, às vezes um pouco irritado, que eu
tivesse paciência.
Nós levávamos dias de serviço. As mãos do
meu pai - já endurecidas e calejadas - nem sofriam mais a dor da batida da
chibanca na pedra, tantas tinham sido suas experiências. Lembro que foi algo
que sempre me tocou muito ver suas mãos duras e rochosas. Algumas vezes, por
causa das condições geográficas do lugar, ele sentia falta de ar quando estava
muito fundo e alguém tinha de retirá-lo às pressas, puxando rapidamente a corda
da engenhoca com ele agarrado nela. Não era fácil. Ao contrário, era tudo um
processo lento e custoso. Eu não compreendia como tudo aquilo acontecia! Areia,
buraco, força, barro, pedra... água!
Quando a cacimba já atravessava todas as
camadas e horizontes do solo desde a superfície, aquilo já era tão fundo que
sequer enxergávamos o final. Meu pai subia à margem com uma cara de quem já
sabia de tudo. Era quando chegava a hora em que ele provava quase que
cientificamente que havia água ali, jogando uma pedra grande no fundo.
Primeiramente sentíamos a demora da pedra caindo. Depois, o barulho da pedra na
água: “puffff!”. "Finalmente!". Eu me recordo muito vividamente do
que eu sentia, era uma espécie de amor, eu acho, e inquietude. Talvez não hajam
palavras em mim ou comigo agora que expressem objetivamente aquela emoção, mas
partes dela chegam até mim enquanto escrevo isso. Era um sentimento misturado
de fé, entusiasmo, esperança, espanto e alegria.
Mais singular do que aquelas emoções foi o
susto de ter me dado conta, já muitos anos depois - embora achando que muita
coisa tivesse mudado -, que eu continuo sendo o mesmo observador de cacimbas
que era na infância. Agora um pouco mais atento ao movimento das coisas, talvez
um pouco mais paciente e, sem dúvidas, consciente de que mais do que assistir
ao processo, eu agora faço parte dele, agindo. Considero o processo com alguém
em psicoterapia em tudo semelhante ao processo de escavação da cacimba. As
camadas sendo perfuradas, a fase mais dura emergindo quando o chão resiste em
ser furado, a dor, o cansaço, o suor, a ampliação do espaço, a resistência, a
falta ar, o movimento de retirada para respirar... a sede.
Quando escolhi Psicologia, não tinha muita
clareza do que de fato isto seria para mim ou quais as reais implicações disso
na minha vida. Lembro que quando cheguei aqui, ainda pensava que sairia
"um detentor de conhecimentos sobre a mente humana", achava que algo
me capacitaria a entender o indivíduo em sua total complexidade e de poder
dizê-lo tanto que sequer ele próprio poderia ser capaz. “Eu o direcionaria e
contribuiria para sua melhora” ou, para ser mais sincero com o que pensava à
época; “eu curaria as pessoas”. Talvez aqueles fossem até os desejos da
sociedade moderna refletidos em mim, ou ainda, talvez fosse a mim mesmo que eu
desejasse entender, redirecionar e curar. No entanto hoje, depois de caminhar
alguns passos, suponho estar mudando a direção disso.
A Abordagem Centrada na Pessoa foi um
encontro muito bonito na minha vida com algo que sempre esteve comigo, mas que
não tinha nome ainda, nem corpo. Eu nunca vou esquecer dos incômodos que eram
gerados em mim toda vez que eu saía das aulas de Psicologia fenomenológico-existencial.
Eu sempre saía perdidamente confuso e desorientado, mas não sabia porquê. Algo
meu simplesmente era mexido ali. No mesmo semestre, quando a professora Sandra
falou que estaria chamando novas pessoas para o grupo de extensão dela, eu me
senti profundamente chamado. Não por ela, mas por mim mesmo. E não cabia outra
coisa senão ir. Algo de uma força em mim quase me empurrava em direção a isto e
eu decidi ouvir, ainda que resistente e com medo.
Quase um ano depois de ter entrado, no
finalzinho de novembro, nós do grupo decidimos nos reunir (e nos ouvir) por um
final de semana inteiro em uma casa de praia. Era nosso Workshop… agora já
fazem dois anos. Esta, inclusive, é a primeira vez que escrevo sobre isso e eu
ainda consigo sentir a cor daqueles três dias de vivência. Foi muito intenso
para mim. Revisitar essa memória ainda me emociona muito porque me faz lembrar
de tudo se desdobrou na minha vida a partir dali. Lembro que já no finalzinho
do segundo dia, ouvindo um dos amigos da gente (que inclusive hoje não está
mais conosco caminhando na vida) eu fui tomado por uma coragem desconhecida e
mais tarde, no encontro da noite, simplesmente comecei a falar. Falei de coisas
que eu nunca tinha tido coragem de falar antes, coisas que estavam anos e anos
presas dentro de mim. Eu deitei no tapete da sala e chorei um choro
absurdamente novo e abismal. A minha existência doía tanto que eu não sabia se
ia aguentar… mas pela primeira vez eu a escutava e a sentia vibrar inteira
dentro de mim.
Hoje compreendo muito mais. Acho que eu
estava escavacando a areia, o barro, perfurando a pedra e molhando o dedo na
minha própria água, pela primeira vez. Lembro que eu disse a uma amiga, no dia
seguinte, que a sensação que eu tinha era de que havia entrado num lugar muito
fundo e que quando cheguei, ela já estava lá. Eu tinha pessoas vivendo aquilo
comigo. Desde então a minha vida nunca mais foi a mesma. Eu a atualizei.
Claro que com isso não quero dizer que encerrei o meu processo, mas que muito
pelo contrário, eu o iniciei.
Dentre as tantas coisas que tenho desde
então aprendido por aqui, pelo meu caminho, uma delas é que a experiência da
gente pode se ampliar enormemente. Que é possível ser eu mesmo, cada vez mais,
e me atualizar por dentro, naquilo que é mais meu. Ter compreendido isso me
emancipa e legitima um pedaço meu solto no espaço da vida que antes se sentia
solitário e triste e que hoje pode ser abraçado por mim mesmo. Agora eu posso
muito mais ir e voltar (e deixar as coisas irem e voltarem também) nesse grande
balanço. Talvez isso possa não ser "se encontrar", mas certamente é
um pedaço substancial da imensa procura. Grande parte do que chamo hoje de
minha liberdade foi construída assim. Acredito muito que isso esteja sendo
aprender sobre a cacimba que cada um de nós tem dentro de si para explorar.
Talvez esta seja a nossa grande busca e, de fato, nós não temos como prever
nada, sequer se conseguiremos alguma coisa. No entanto, eu me sinto convocado a
ir, com as mãos na areia, quando der, mas as retirando também, se for o caso.
Na medida em que me escuto, posso me permitir ir em frente ou recuar um pouco.
Posso sentir medo, dor, tristeza… e posso sentir alegria, amor e partilha
também. Posso ser eu inteirinho e isso é a maior autorização que eu posso me
dar na vida, muito embora haja vezes em que eu não o consiga. E tudo bem
também.
Por isso falo neste trabalho de uma
Abordagem Centrada na Pessoa. Porque mais do que nunca eu agora tenho a certeza
- de mim para mim mesmo -, que o que realmente quero para a minha vida é
simplesmente me fazer presente no processo de escavação das pessoas,
facilitando seus encontros com a água. E quero fazer isso sem me perder de quem
eu sou, sem me abandonar, sem me restringir ou me limitar. Permitindo ao máximo
sentir quão escuro o poço fica junto com quem está lá dentro, ajudando a
retirar o barro, a pedra e iluminando um pouco quando não for possível enxergar
muita coisa.
Por isso uma Abordagem Centrada na Pessoa.
Porque simplesmente é o que faz sentido hoje na minha vida. Me entristece,
inclusive, que isso ainda pareça insuficiente às pessoas. De igual maneira, me
entristece que para muita gente a psicologia seja essa ciência que propõe um
lugar de encontro onde as relações se dão de forma vertical, onde alguém sabe mais
do que o outro e então pode lhe ensinar algo. Gostaria muito que as pessoas
conseguissem entender a violência mútua que é tentar consertar o mundo de
alguém e o quanto perdem de experiência vivendo esta ilusão. Em relação a isso,
creio que tenho muita coisa para aprender, porque me fere muito ainda ver esta
configuração lançada goela-a-baixo no mundo. Tento sanar um pouco desta minha
angústia escrevendo este capítulo, mas ele é insuficiente ainda. Acho que isto
reflete perfeitamente o que estou construindo agora na minha vida e talvez faça
sentido para mais alguém. Espero que sim.